Principal fundo de fomento à pesquisa científica do país, o FNDCT é reformulado, mas governo veta proibição de bloqueio de seus recursos
O projeto também proibia novos contingenciamentos dos recursos do fundo – nos últimos cinco anos, apenas uma fração dos valores disponíveis pôde ser executada – e determinava a liberação dos R$ 4,2 bilhões bloqueados em 2020. Essas duas alterações, porém, foram vetadas por recomendação da equipe econômica. Na decisão, publicada na edição de 13 de janeiro do Diário Oficial da União, o governo argumenta que, do modo como foram aprovados no Congresso, os dispositivos “contrariam o interesse público”, já que colidem com disposições legais existentes. Segundo essa visão, isso resultaria em um aumento não previsto das despesas e em um impacto significativo nas contas públicas, podendo levar ao descumprimento da Emenda Constitucional nº 95, que em 2016 instituiu por 20 anos o teto dos gastos públicos. Informa ainda que, ao obrigar a imediata execução dos recursos contingenciados em 2020, a medida forçaria o cancelamento de dotações das demais pastas já programadas para o exercício, atrapalhando a realização de projetos e ações planejadas pelas outras áreas do governo, elevando a rigidez orçamentária.
“Os vetos presidenciais desfiguram o PLP 135/20, que tinha como principal objetivo impedir o bloqueio dos recursos do FNDCT já este ano”, diz o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), autor do projeto de lei. A decisão, para ele, demonstra “a falta de visão estratégica” do governo federal em relação ao papel da CT&I para o desenvolvimento social e econômico do país. “Os vetos contrariam o espírito do projeto de lei, colocando o Brasil na contramão do mundo, que, durante a pandemia, aumentou os aportes em CT&I [ver Pesquisa FAPESP nº 294]”, complementa Fernando Peregrino, presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies).
A imposição de vetos ao PLP 135/20, agora transformado na Lei Complementar nº 177, não surpreendeu o engenheiro Pedro Wongtschowski, presidente do Conselho de Administração da Ultrapar Participações e líder da Mobilização Empresarial pela Inovação (MEI) da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que há mais de uma década promove a interlocução entre o governo e setores da indústria. “Sabíamos que a maior oposição viria da equipe econômica, que espera poder usar as receitas futuras oriundas dos fundos setoriais que alimentam o FNDCT em seus esforços de ajuste das contas públicas”, esclarece Wongtschowski, que é membro do Conselho Superior da FAPESP. Já Gianna Sagazio, diretora de Inovação da CNI e coordenadora da MEI, argumenta que os dispositivos vetados não impactariam as contas do governo. “A dotação orçamentária prevista para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações [MCTI] na proposta de lei orçamentária já computa o valor total arrecadado pelo FNDCT, de modo que o investimento feito com recursos do fundo não entra no cálculo dos gastos que compõem o déficit primário”, ela explica. “Tampouco há risco de violação do teto de gastos, dado que a proposta defendida no PLP 135/20 não pressupõe aumento do orçamento do MCTI.”
A expectativa da comunidade científica é que o Congresso derrube os vetos. “Aprovamos o projeto de lei com expressiva maioria na Câmara e no Senado, o que sugere que as chances de os vetos serem derrubados são grandes. Seja como for, vamos ter de aguardar a volta do recesso parlamentar para reiniciar a articulação”, afirma o senador Lucas. O problema, na avaliação de Celso Pansera, ex-deputado e ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, é que isso pode demorar para acontecer. “Tem a eleição dos presidentes das duas casas legislativas em fevereiro e várias outras pautas para votar, de modo que a análise dos vetos pode ficar para março, abril ou maio, após o início do ano fiscal”, diz. A lei, nesse caso, valeria à luz das alterações feitas pelo governo, e, mesmo com a derrubada dos vetos, as medidas só entrariam em vigor em 2022. Com isso, as perspectivas para a CT&I em 2021 seguem críticas e podem se agravar caso o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021 (PLOA 2021) apresentado pelo Executivo seja aprovado. A lei prevê um aumento de 13% no valor total contingenciado do FNDCT em 2021 em relação ao ano anterior, isto é, pouco mais de R$ 4,8 bilhões (ver gráfico).
Apesar dos vetos, a lei garante algumas conquistas, como a transformação do FNDCT em fundo financeiro cumulativo e a possibilidade de aproveitamento de saldos anuais não usados para reinvestimento. “Se isso tivesse sido feito há 10 anos, mesmo com todos os contingenciamentos no período, o FNDCT teria um saldo acumulado de cerca de R$ 45 bilhões”, afirma o economista e ex-deputado federal Marcos Cintra, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV). Cintra foi o idealizador da proposta de transformação do FNDCT em fundo financeiro e de reinvestimento de seus saldos anuais não utilizados quando presidiu a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência vinculada ao MCTI e responsável pela administração do fundo, entre 2016 e 2018. Segundo ele, essas mudanças devem ajudar a transformar o FNDCT em uma fonte de investimento sustentável. “O reaproveitamento de saldos acumulados não usados deverá assegurar a previsibilidade dos recursos governamentais para projetos estratégicos, permitindo à Finep planejar melhor suas atividades de financiamento”, diz. “Isso é importante, já que os investimentos em CT&I são de longo prazo e, por isso, requerem estabilidade.” No entanto, complementa Izalci Lucas, para que essas mudanças façam sentido, é preciso que o Congresso derrube os vetos. “Não adianta ter um fundo financeiro que não tem dinheiro para investir”, afirma. “Se os governantes não entenderem que só vamos sair dessas crises investindo em educação, ciência e tecnologia, não chegaremos a lugar nenhum.”
Há ampla concordância em relação a isso no Congresso Nacional. A aprovação do PLP 135/20 no Senado, em agosto, deu-se quase por aclamação. Foram 71 votos a favor e apenas um contra, o do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Na Câmara dos Deputados, em dezembro, não foi diferente: 385 votaram a favor do projeto de lei, enquanto 18 se manifestaram contra a medida, entre eles todos os deputados do partido Novo e alguns parlamentares do PSL. Na avaliação de Lucas, a quase unanimidade em relação ao futuro do FNDCT resulta de um alinhamento entre deputados e senadores de diferentes partidos em torno da importância e do potencial estratégico da CT&I para o país. Para Cintra, isso mostra “que projetos de mérito, como esse, têm o condão de congregar parlamentares de várias correntes políticas e ideológicas”
A construção desse consenso foi viabilizada por uma extensa articulação política, construída no âmbito da Frente Parlamentar Mista de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação, presidida por Lucas, nos últimos dois anos. A frente tem 207 parlamentares de vários partidos, que se reúnem em sessões com membros da comunidade científica e da sociedade civil para discutir temas de interesse do setor. Em parceria com a MEI, a frente promoveu, em novembro de 2019, em Brasília, um encontro que contou com a participação de diversas autoridades, entre elas Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente, além de empresários de vários setores da indústria. A ideia era discutir a inovação como vetor para o desenvolvimento e a importância de uma política própria de longo prazo, baseada em metas e na garantia de recursos. Paralelamente, por parte da comunidade científica, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) lançou em maio daquele ano a Iniciativa de Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e outras entidades. O objetivo era promover uma articulação mais integrada com os parlamentares para poder apresentar a eles as demandas do setor.
Essa articulação entre entidades científicas, representantes de diferentes setores da indústria e parlamentares ajudou a estancar a deterioração do orçamento para a CT&I em 2020 (ver Pesquisa FAPESP nº 289). Mais recentemente, impediu também a extinção do próprio FNDCT. Em março de 2020, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado retirou o fundo do escopo da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 187 de 2019, a qual propunha extinguir os fundos públicos vinculados a áreas específicas e direcionar seus recursos para outras finalidades, de modo a tentar estimular a economia (ver Pesquisa FAPESP nº 290). Além do FNDCT, salvaram-se os fundos de Segurança Pública, Antidrogas e o de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé). Permaneceu indefinida, porém, a situação dos Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia, principal fonte dos recursos do FNDCT. A PEC nº 187 deverá ser votada este ano. A expectativa é que a promulgação do PLP 135/20 carregue consigo os fundos setoriais, excluindo-os do escopo da proposta. “Não adiantaria ter o FNDCT sem os fundos que o alimentam”, diz Pansera.
A atual estrutura de arrecadação de recursos do FNDCT resulta de um longo trabalho realizado entre 1998 e 2001, com a criação dos fundos setoriais. “Eles permitiram mobilizar recursos de várias fontes, a partir de projetos de lei aprovados praticamente por unanimidade no Congresso Nacional”, diz o economista e engenheiro Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da FAPESP. “A expectativa sempre foi criar uma fonte estável de recursos para financiar o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação no país. A aprovação do PLP 135/20 coroaria isso com chave de ouro”, complementa Pacheco, um dos idealizadores dos fundos à época em que foi secretário-executivo do então Ministério da Ciência e Tecnologia, entre 1999 e 2002.
O contingenciamento de recursos constitui o principal gargalo do FNDCT (ver Pesquisa FAPESP nº 285). Sucessivos bloqueios orçamentários decretados pelo governo, na tentativa de conter a deterioração das contas públicas, fizeram com que o dinheiro disponível no fundo diminuísse progressivamente nos últimos anos, comprometendo sua capacidade de custear bolsas e projetos de pesquisa em universidades e empresas (ver gráfico). Em 2020, o contingenciamento do FNDCT atingiu o maior nível dos últimos cinco anos. Dos R$ 4,9 bilhões que compunham seu orçamento, R$ 4,2 bilhões (87,5%) foram transferidos para um fundo de reserva, ficando à disposição do governo para o pagamento da dívida pública e superávit fiscal. “Trata-se de flagrante ilegalidade”, destaca o físico Ildeu de Castro Moreira, presidente da SBPC. “Não há o que justifique o uso desses recursos para outra coisa que não para o aprimoramento da infraestrutura de CT&I das instituições de pesquisa do país e o fomento à inovação tecnológica nas empresas.” Segundo Moreira, o bloqueio de recursos para a CT&I não apenas compromete o combate à Covid-19, como também emperra a recuperação econômica do Brasil, levando o país “para uma situação de maior atraso, desigualdades crescentes e empobrecimento geral”.
As disputas entre a área científica e a equipe econômica de governo pelos recursos do FNDCT são antigas, mas se intensificaram a partir de 2015, com o crescimento acelerado dos gastos e da dívida pública brasileira. Entre janeiro e outubro de 2020, as contas do governo federal acumularam um déficit de aproximadamente R$ 681 bilhões – em 2021, esse valor pode chegar a mais de 90% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. “A área econômica sempre vai querer ter espaço para reduzir os gastos do governo. É natural”, pontua Wongtschowski. “O problema é que, do outro lado, o MCTI, nos últimos anos, perdeu força e influência política para fazer valer seus interesses. A balança ficou muito desequilibrada.” Enquanto isso, vários países estão fortalecendo suas políticas de CT&I, investindo acima de 2% do PIB no setor. No Brasil, esse número ainda está abaixo disso. “Essa tem sido uma das razões para a relativa estagnação da CT&I no país nos últimos anos. Por isso, é importante que os vetos sejam revistos pelo Congresso e derrubados o quanto antes”, conclui Cintra.
Foto: Cris Faga / Nurphoto / Nurphoto via AFP
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP