Responsável pelas defesas naturais do nosso organismo, o sistema imunológico virou o centro das atenções em tempos de coronavírus
Isso porque, como ainda não temos medicamentos ou vacinas para nos proteger desse novo vírus, combatê-lo depende inicialmente da capacidade de resposta de cada indivíduo à doença, conhecida como Covid-19.
Sendo assim, mesmo que não impeça ninguém de contrair a doença, ter uma imunidade em dia é vital para ajudar na luta contra a infecção e na recuperação do doente, dizem especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Segundo eles, são quatro os pilares de uma “boa imunidade”: praticar exercícios físicos regularmente, reduzir o estresse, dormir bem e ter uma alimentação balanceada.
Mas, antes de tudo, os especialistas alertam para outro tipo de combate, contra a “desinformação”.
O principal mito é a suposição de que podemos “elevar nossa imunidade”, dizem.
“Não existe essa história de imunidade alta. Existe imunidade normal ou imunidade baixa por algum problema que a pessoa tenha, como doenças ou uso de medicamentos imunossupressores (que reduzem a atividade ou eficiência do sistema imunológico, usados, por exemplo, quando o paciente recebe um órgão transplantado). Imunidade alta não existe, não tem como elevar a imunidade”, explica o infectologista Alberto Chebabbo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia e diretor-médico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro.
“Ou seja, quem tem imunidade normal, tem o risco de contrair a doença e desenvolver os sintomas. Quem tem imunidade baixa, inclusive os idosos, porque seu sistema imunológico já envelheceu, tende a apresentar os sintomas mais graves da doença”, acrescenta.
Ana Caetano Faria, professor titular de Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concorda.
“O que ocorre é que nosso estilo de vida faz com que nossa imunidade caia. Ou seja, existem formas de restabelecer a normalidade de nosso sistema imunológico, mas não elevá-lo”, diz.
Importância dos quatro pilares
Por que esses quatro pilares são tão importantes?
Segundo Faria, cada um deles tem um impacto diferente no funcionamento do sistema imunológico.
Mas, para isso, é preciso entender o que é o sistema imunológico e como ele funciona.
Em linhas gerais, ele é um conjunto complexo de células, tecidos, órgãos e moléculas que cumprem funções específicas em uma resposta coordenada para neutralizar vírus, bactérias, fungos e parasitas — antes que sejam fatais.
Diante de uma nova ameaça, o corpo tem de partir do zero e construir as defesas necessárias. Mas, no caso de um vírus, esse processo costuma ser mais demorado do que a velocidade com que este tipo de microrganismo se multiplica e infecta células.
“É uma corrida em que o adversário avança mais rápido do que o sistema imunológico é capaz de desenvolver mecanismos de ação para combatê-lo”, afirma o imunologista Renato Astray, pesquisador do Instituto Butantan.
Isso não significa, no entanto, que a batalha esteja perdida. O sistema imunológico encontra com o tempo formas de acabar com a ameaça, como vem ocorrendo nesta epidemia de coronavírus.
Como funciona o sistema imunológico
O corpo tem barreiras para impedir a entrada de patógenos, como são chamados os microrganismos que afetam nossa saúde.
Elas podem ser mecânicas, como a pele, microbiológicas —por exemplo, a flora de bactérias do intestino—, ou químicas, como as enzimas presentes na saliva ou o suco gástrico do estômago.
Se um corpo estranho consegue superar essas barreiras, cabe ao sistema imunológico nos proteger.
Todas as pessoas nascem com defesas naturais contra invasores. Esta é a chamada resposta imunológica inata, que é acionada automaticamente quando células detectam que foram infectadas e enviam sinais químicos para avisar que o corpo está sob ataque.
Isso faz com que outras células acionem mecanismos para se tornarem menos suscetíveis à infecção e ativem o sistema imunológico, que vai pôr em ação células específicas para combater o invasor.
Essas células são fabricadas continuamente pela medula óssea, a partir de células-tronco, que estão em um estágio inicial de desenvolvimento e têm o potencial de se transformar, em um processo de diferenciação, para cumprir funções específicas.
Dessa forma, as células-tronco se tornam leucócitos —ou glóbulos brancos—, que atuam em nosso sistema imunológico. Uma elevação na quantidade de leucócitos no exame de sangue é indício de uma infecção. Se estiver abaixo do normal, o sistema imunológico está enfraquecido.
Os neutrófilos são o tipo de leucócito mais numeroso e atuam como a primeira linha de defesa do organismo. Eles envolvem e eliminam o invasor por meio da fagocitose, produzindo enzimas digestivas que destroem o patógeno.
Também liberam sinais químicos que recrutam mais células para atacar a ameaça. Isso gera uma inflamação na região onde está o invasor. Essa área é irrigada com sangue, que traz consigo mais leucócitos para auxiliar no combate.
Outro tipo de glóbulo branco, o linfócito conhecido como “natural killer” (assassino natural, em inglês), age principalmente contra tumores e vírus. Ele libera grânulos de proteína ao redor do alvo que fazem o patógeno se autodestruir.
Um terceiro tipo de leucócito, o macrófago, também atua nesse estágio fagocitando invasores, mas cumpre outra função importante no próximo estágio da resposta imune.
A resposta imune adquirida
Quando um invasor é agressivo, resistente ou está presente em maior quantidade, isso exige outro tipo de reação do organismo.
A resposta imune adquirida é desenvolvida pelo corpo após entrar em contato com um patógeno. Ela envolve a ação dos linfócitos, células especializadas capazes de combater microrganismos e de nos proteger da mesma ameaça por mais tempo.
Os linfócitos ficam armazenados em órgãos como os linfonodos e o baço, à espera de sinais de que devem entrar em ação.
Um dos principais alertas é dado pelos macrófagos, que capturam um microrganismo ou parte dele e o transportam até os linfócitos, dando início à resposta imune adquirida. “Os macrófagos atuam como uma ponte entre as duas respostas imunes”, explica Astray.
Os linfócitos começam então a produzir milhões de cópias de si mesmos e reforçam o sistema imunológico ao gerar anticorpos, proteínas capazes de neutralizar um patógeno. Os anticorpos têm a capacidade de reconhecer e se unir ao invasor, impedindo que ele infecte novas células e se reproduza.
Os linfócitos também marcam alvos para neutrófilos, macrófagos e “natural killers”. “Os linfócitos são como maestros do sistema imunológico, ao fazer com que as células imunes se aglutinem em torno de uma ameaça”, diz Portela.
Ao final deste processo, a maioria dos linfócitos é destruída, mas alguns se diferenciam e permanecem em nosso corpo por vários anos, formando uma memória imunológica que tornará mais ágil o combate ao patógeno se ele nos infectar novamente.
As células imunes se multiplicam mais rapidamente ao detectar a mesma ameaça, o que acaba com aquela desvantagem do sistema imunológico na corrida inicial contra um invasor após a infecção. “Isso nos impede de ficar doentes ou faz com que os sintomas sejam mais leves”, afirma Astray.
Por esse motivo, não contraímos mais de uma vez algumas doenças, como catapora, caxumba, rubéola ou sarampo. Mas isso não impede que tenhamos novas gripes, por exemplo, porque o vírus que a causa, o influenza, sofre mutações facilmente, o que torna a memória imunológica inútil contra suas novas versões.
Como nossa imunidade é afetada
Sendo assim, Faria, da UFMG, diz que, quando dormimos pouco ou nos alimentamos mal, isso afeta o funcionamento de nosso sistema imunológico de diferentes maneiras. O mesmo ocorre quando deixamos de praticar atividades físicas ou sofremos estresse.
“Todos esses pilares são importantes, mas destaco a necessidade de dormirmos bem. É durante o sono que temos maior produção de células de defesa pela medula óssea. Estudos mostram que dormir menos de cinco horas por noite aumenta em quatro vezes a chance de desenvolver infecções respiratórias, como gripes e resfriados”, diz.
“Portanto, se você não está dormindo suficientemente, não está dando ao corpo a chance de se recuperar.”
Já ao praticarmos atividade física de intensidade moderada, liberamos hormônios que ajudam a regular nosso sistema imunológico. Por outro lado, quando não nos estressamos, nosso corpo deixa de produzir substâncias que o prejudicam. Por fim, ao seguirmos uma dieta balanceada, ajudamos a fornecer energia para o bom funcionamento de nossas células de defesa, resume Faria.
Mas o que é uma dieta balanceada?
A BBC News Brasil ouviu a nutricionista Julia Granje. Ela alerta “que não existe nenhum alimento ou vitamina que combata o novo coronavírus”. “Mas, obviamente, quando o sistema imune está ativo e saudável, vai ajudar a lutar a combatê-lo.” Confira as dicas dela:
• Monte um “prato colorido”
Granje recomenda comer dez porções de 80 gramas por dia, sete de legumes e verduras e três de frutas, de cores diferentes. “Cada cor dos alimentos reflete o tipo de micronutrientes que têm neles”. “Desafio meus pacientes a colocar pelo menos cinco cores no prato.”
Em relação aos micronutrientes, ela destaca o zinco e o selênio.
“O zinco é encontrado nas carnes vermelhas e no fígado de frango. Também nas ostras, que são muito ricas em zinco.”
Ela acrescenta que o zinco também está presente nos vegetais, “mas em menor quantidade”, como no feijão.
“A quantidade de zinco que encontramos no feijão é a metade da de uma carne vermelha. Isso é um alerta importante para quem é vegetariano”, assinala.
Já o selênio é encontrado na castanha-do-pará. “Duas castanhas por dia já são suficientes. A farinha de trigo também é fonte de selênio”.
Granje também recomenda comer menos carboidratos simples, como massas, arroz branco, pães e bolos. Prefira os carboidratos “complexos”, ou seja, aqueles integrais, recomenda.
“Não gosto de vilanizar os carboidratos. O problema é que o brasileiro come muito pouca fibra. E sabemos que carboidratos simples, quando ingeridos em excesso, tendem a induzir uma resposta inflamatória do nosso corpo, o que pode ser prejudicial se você já está combatendo uma infecção”, acrescenta.
• Não esqueça das “vitaminas antioxidantes”
Segundo Granje, vitaminas A, C, D e E são muito importantes. Ela ressalva, contudo, que muitos brasileiros vêm se “superssuplementando” de vitamina D.
“Não adianta tomar vitamina D sem ter a exposição ao sol. Porque o que ativa a vitamina D é essa exposição ao sol. Como se trata de uma vitamina lipossolúvel, se você toma em excesso, nosso corpo não a excreta. É diferente da vitamina C, que as pessoas também tomam em excesso, mas isso é excretado pela urina”, explica.
• Cuide de seu intestino
Granje destaca que pesquisas mostram a influência da nossa microbiota intestinal em nossa imunidade — nossos intestinos são habitados por 100 trilhões de bactérias de diferentes espécies. Neste sentido, ela reforça a importância do consumo de fibras.
“Infelizmente, não prestamos muita atenção a isso.”
Um imenso estudo conduzido nos Estados Unidos, o Estudo Americano do Intestino, sugere que aqueles cujas dietas incluem mais alimentos à base de plantas têm um microbioma mais diversificado, diz Daniel McDonald, diretor-científico do projeto.
• Baixo consumo de álcool e sódio
O álcool e o sal em excesso podem ser prejudiciais para o sistema imunológico. Seu consumo deve ser feito com moderação.
Segundo pesquisa da Escola Médica da Universidade de Massachusetts (EUA), o consumo exagerado de álcool prejudica a capacidade do organismo de combater infecções virais, especialmente do sistema respiratório, inibindo o funcionamento de proteínas responsáveis pela regulação do sistema imune.
Foto: Getty Images
Fonte: Coronavírus: os quatro pilares para manter a imunidade em dia – 30/03/2020 – Ciência – Folha