Reflexões acerca da MPV 927/2020

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Em meio à pandemia mundial do Coronavírus (Covid-19), o Governo Federal brasileiro editou a Medida Provisória (MPV) nº 927, de 22 de março de 2020, que “dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências”.

A MPV trata de matérias sensíveis às relações de emprego, dentre elas salários, férias, redução ou ampliação de jornadas de trabalho, banco de horas, suspensão de contrato laboral, dentre outras.

Logo no primeiro artigo a norma deixa claro aquilo que, em tese, é o seu propósito: preservação do emprego e da renda e enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

Para efeito desta análise, o mais importante, neste momento, é destacar que as regras criadas têm finalidade temporária: enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto mencionado acima.

De acordo com a norma em apreço, para efeitos trabalhistas, está constituída a hipótese de força maior, para os fins do que dispõem os artigos 501 e seguintes da CLT. Referidos dispositivos das normas consolidadas estabelecem que em caso de força maior, os salários poderão ser reduzidos em até 25% (vinte e cinco por cento), respeitado o salário mínimo regional. A CLT ainda prevê que “cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior, é garantido o restabelecimento dos salários reduzidos”.

Entretanto, alertamos que a regra que estabelece a redução salarial sem a participação dos sindicatos dos trabalhadores poderá ser considerada inconstitucional, haja vista que a Constituição Federal estabelece, em seu artigo 7º, inciso VI, que só será permitida a redução dos salários se precedida de convenção ou acordo coletivo de trabalho.

Portanto, entendemos que a redução salarial a que faz referência a MPV em estudo só poderá ser possível se interpretado à luz do comando constitucional, ou seja, com a participação dos sindicatos.

A Medida afirma que o acordo individual escrito, entre empregador e empregado, firmado durante a prevalência do estado de calamidade pública, com o objetivo de garantir a permanência do vínculo empregatício, terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição. Recomenda-se que este regramento seja evitado ao máximo, haja vista que a CLT, que permanece em vigor, prevê que “nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia”.

A norma em apreço aduz que durante o estado excepcional a classe patronal poderá adotar providências referentes ao teletrabalho; antecipar férias individuais; conceder férias coletivas; antecipar feriados; estabelecer banco de horas; suprimir exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; direcionar o trabalhador para qualificação; adiar o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.

Teletrabalho

O teletrabalho, em que pese já existir no país, só foi regulamentado por ocasião da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017), que introduziu alguns dispositivos legais na CLT. Essa modalidade de labor deveria necessariamente estar escrita no contrato de trabalho. A exigência referida foi dispensada pela MPV 927. O que a Medida Provisória exige é que o empregador comunique ao empregado, com no mínimo, quarenta e oito horas de antecedência, por escrito ou por meio eletrônico, a sua decisão de determinar o teletrabalho. Nesta comunicação, é importante determinar as tarefas que o empregado desempenhará ou, não o fazendo, o empregador deve afirmar que o trabalhador irá realizar as mesmas tarefas que já fazia quando o labor era desempenhado no lugar onde normalmente era prestado.

Note-se que a infraestrutura necessária para o trabalhador prestar serviços em sua residência ficará a cargo do patrão, que poderá ceder equipamentos em regime de comodato (empréstimo). Caso o empregador não forneça tais equipamentos e o empregado não os tenha, o serviço será considerado como se tivesse sendo prestado, haja vista que o obreiro estará à disposição.

Eventual reembolso de despesas realizadas pelo trabalhador, na prestação do teletrabalho ou a responsabilidade pelos equipamentos emprestados deverão ser previstas em contrato escrito.

Ainda com relação ao home office, a MPV diz que “o tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou coletivo”. Contudo, recomenda-se não exigir – e mais – não permitir a prestação de serviço aquém ou além do horário normal de trabalho. Lembramos que o contrato de trabalho é bilateral. Assim, se houver trabalho, será devido o pagamento. Normas constitucionais e legais estabelecem a duração do trabalho e o pagamento de horas extras. Destarte, dificilmente a disposição legal em apreço será mantida no arcabouço legal.

Férias

Dispositivos interessantes são aqueles relativos às férias. As férias individuais poderão ser antecipadas. Para isso, o empregador basta comunicar ao empregado com 48 horas de antecedência e fixar o prazo de duração. Note-se que a CLT fala em 30 dias.

A MPV também estabelece que o período de descanso em comento não poderá ser gozado em prazo inferior a cinco dias, dando a entender que a divisão das férias poderá se dar por ato único do empregador. Contudo, a CLT (at.134, §1º), prevê que a divisão do período de férias só poderá ocorrer com a concordância do empregado. Portanto, recomenda-se que o parcelamento das férias não seja imposição e sim acordo entre as partes.

Com relação ao pagamento da remuneração das férias, a MPV estabelece que poderá ser efetuado até o quinto dia útil do mês subsequente ao início do gozo das férias. Este dispositivo contraria frontalmente a CLT. Entretanto, dessa vez a MPV se referiu expressamente à Consolidação das Leis do Trabalho e afirmou que essa a legislação não deve ser aplicada.

As férias coletivas do mesmo modo mereceram atenção da Medida Provisória, que também estabeleceu o prazo de apenas 48 de antecedência para comunicado aos trabalhadores. Novamente a MPV se referiu expressamente à CLT e disse que as regras da Consolidação não eram aplicáveis. Por fim, dispensou a comunicação prévia ao órgão local do Ministério da Economia e a comunicação aos sindicatos representativos da categoria profissional.

Feriados

Os feriados, com exceção dos religiosos, poderão ter o seu gozo antecipado pelos empregadores. Para isso, basta comunicar por escrito aos empregados, também com antecedência de 48 horas, quais os feriados serão antecipados nesse período.

Notem que os feriados religiosos só poderão ser antecipados se o empregado concordar.

Banco de Horas

Banco de horas, em síntese, é um sistema de débito e crédito de horas trabalhadas, que devem ser compensadas ou pagas – caso não compensadas -, em determinado período, durante a relação contratual.

Antes da Reforma Trabalhista, o banco de horas só poderia ser instituído por negociação coletiva (TST, Súmula 85, V). Com a Lei 13.467/17, o banco criado por instrumento normativo pode estabelecer a compensação de horas por um período de até um ano (CLT, art.59, § 2º). Já o criado por acordo individual escrito pode estabelecer compensação dentro de, no máximo, seis meses.

A MPV em análise disse que a constituição de regime especial de compensação de jornada, por meio de banco de horas, poderá ser estabelecida por meio de acordo coletivo ou individual formal, para a compensação no prazo de até dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública.

Estranhamente a Medida diz que “a compensação do saldo de horas poderá ser determinada pelo empregador independentemente de convenção coletiva ou acordo individual ou coletivo”. Ora, acredita-se que, ao firmar acordo, o empregador se obriga a cumpri-lo. Portanto, não pode, individualmente, estabelecer de forma diversa. A Constituição da República prevê obediência aos acordos coletivos e a CLT respeito às regras pactuadas no contrato de trabalho.

Da suspensão das exigências administrativas e de saúde e segurança do trabalho

Desse capítulo da MPV 927, o que tem maior relevo para as entidades de educação é a suspensão da obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto dos exames demissionais. Estes últimos poderão ser dispensados caso o exame médico ocupacional mais recente tenha sido realizado há menos de cento e oitenta dias.

Os exames suspensos temporariamente serão realizados no prazo de sessenta dias, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública.

Suspensão do Contrato de Trabalho

Esse, acredita-se, o ponto mais polêmico da MPV 927/2020, está intitulado na referida norma como “Direcionamento do Trabalhador para qualificação”.

Suspensão do contrato significa que não haverá a prestação dos serviços, mas também não existirá o pagamento dos salários.

A medida prevê a suspensão do contrato de trabalho pelo prazo de até quatro meses “para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional não presencial oferecido pelo empregador, diretamente ou por meio de entidades responsáveis pela qualificação, com duração equivalente à suspensão contratual”.

Ressalta-se que a suspensão coletiva do contrato de trabalho para a qualificação profissional, também denominada de lay-off, existe no cenário jurídico desde 2001 (CLT, art.476-A). Entretanto, com previsão em convenção ou acordo coletivo de trabalho e aquiescência formal do empregado.

Contudo, em tempos de crise, a Medida dispensou a participação sindical e sugeriu a ausência de pagamentos de salários por meio de acordo individual com empregado ou grupo de empregados, precarizando ainda mais a relação trabalhista, no que foi duramente criticada.

Notícias recentes anunciaram que o Governo Federal pretende revogar as disposições que tratam deste tema.

Recolhimento do FGTS

Por fim, a MPV suspendeu o recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimento em abril, maio e junho de 2020.

Tal recolhimento poderá ser realizado de forma parcelada, em até seis parcelas mensais, a partir de julho de 2020, sem a incidência da atualização, da multa e dos encargos previstos.

Para usufruir da prerrogativa, o empregador deverá seguir as orientações contidas na Medida Provisória.

Conclusão

De um modo geral, a MPV em análise é relevante para o cenário de crise. Porém, em muitos momentos, como visto, relega a segundo plano – ou até mesmo ignora por completo – as disposições contidas na Constituição Federal, que preconiza, em seu art. 7º, inciso XXVI, o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho. A Medida também altera uma série de direitos, também previstos no referido artigo 7º, alçados à categoria de direitos fundamentais.

Destarte, recomenda-se cautela na utilização das prerrogativas estabelecidas na MPV 927/2020 e respeito às Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho, caso apresentem regras conflitantes com aquela norma.

É o parecer.

Brasília-DF, 23 de março de 2020.

Walter Dantas Baía — Dyogo Patriota — Marco Ferreira

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